“A cerimônia de abertura das Olimpíadas é ainda pior do que você imagina”

Alexandre Borges
5 min readJul 31, 2024

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“Ah, Alexandre, ainda esse assunto?”, diria o tiktoker que já quer mudar para o próximo vídeo. Eu também já tinha virado o disco (sou do tempo que havia disco e ele virava), mas me deparei com a análise de quem é realmente do ramo em matéria de simbolismo e tive que voltar ao tema.

O artesão canadense Jonathan Pageau, em seu vídeo Symbolism Explained: The Olympics Opening Ceremony is Worse than You Thought” (“Simbolismo Explicado: A Cerimônia de Abertura das Olimpíadas é Pior do que Você Imagina”), ficou irritado com a confusão que se formou sobre qual era o verdadeiro sentido de tudo aquilo e, claro, porque muitos ainda insistem que a cena não era a “Última Ceia” de Leonardo DaVinci, mas a “Festa dos deuses” de Jan van Bijlert (veja mais aqui).

Logo de início, ele que tem o francês como língua nativa, explicou que o nome da cena (tableau) era um trocadilho que fazia referência direta à “Última Ceia”, não deixando qualquer dúvida sobre do que se tratava. A DJ e ativista gay Barbara Butch, que fez “Jesus” na apresentação, postou no seu Instagram que a aquilo era “o novo testamento gay”. Depois da polêmica, mudou a versão, mas já era tarde.

Pageau analisa a performance relacionando que viu com o simbolismo do carnaval, quando os papéis sociais tradicionais são trocados, reis viram mendigos e mendigos viram reis. Na festa parisiense, a principal iconografia cristã é substituída por drag queens numa orgia, que ficam se acariciando enquanto o “Dionísio” canta.

Como cantaria Ney Matogrosso em “O Vira”:

Bailam corujas e pirilampos
Entre os sacis e as fadas
E lá no fundo azul, na noite da floresta
A lua iluminou a dança, a roda, a festa

Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem, vira, vira
Vira, vira lobisomem
Vira, vira, vira

Ele explica que o uso de imagens carnavalescas é uma forma de celebração da diversidade que está “inversamente ligada à unidade”. Na cultura ocidental, o carnaval e outras festividades semelhantes servem como momentos de inversão e escândalo, seguidos por um retorno à normalidade e penitência, no caso da quaresma católica. “As festividades carnavalescas são importantes como parte do ciclo anual”, explica, mas a celebração do caos, sem um retorno à ordem, é destrutiva.

O carnaval simboliza o caos primordial que existe antes da criação da ordem. É uma celebração da desordem que, paradoxalmente, reforça a necessidade de ordem quando o período festivo termina.

“No princípio, criou Deus os céus e a terra.
A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas.
Disse Deus: Haja luz; e houve luz.
E viu Deus que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas.”

Gênesis 1, 1–4

O carnaval é seguido por um período de abstinência e reflexão (como a quaresma). Essa alternância entre excesso e privação é um ciclo de morte e renascimento, onde a destruição do velho permite o surgimento do novo. Através da catarse coletiva, as comunidades purgam seus pecados e se preparam para um novo ciclo.

Pageau lembra da Saturnália, uma das festas pagãs mais populares de todo Império Romano. Era uma homenagem a Saturno que acontecia em dezembro. Durante a Saturnália, as normas sociais e hierarquias eram temporariamente suspensas. Escravos eram tratados como iguais e até servidos por seus senhores. O ápice era a coroação do “Rei da Saturnália”, geralmente um escravo ou alguém de baixa posição social, que tinha a liberdade de dar ordens absurdas para todos.

No Brasil, Roberto DaMatta escreveu bastante sobre o carnaval carioca e costuma ser citado quando falamos disso. Para ele, a festa é um período em que as distinções de classe, raça e gênero são momentaneamente apagadas, permitindo que o sagrado e o profano se misturem. Um “mundo às avessas”, onde os valores e normas do cotidiano são invertidos. Isso cria um espaço onde a crítica social pode ser expressa de forma lúdica e simbólica, como faziam os bobos da corte medievais.

O carnaval permite que as pessoas expressem aspectos de si mesmas que são normalmente reprimidos ou considerados inaceitáveis pela sociedade em tempos normais. Isso inclui desejos, impulsos e comportamentos que pertencem à “sombra” junguiana.

Pageau diz que a mensagem de “abertura, diversidade e inclusão” da apresentação não é evidentemente a que se queria passar. Enquanto o carnaval inverte temporariamente a ordem, o objetivo dos novos jacobinos é a mudança definitiva, uma sociedade remodelada do zero. O simbolismo do arco-íris, usado como bandeira LGBT, representa multiplicidade, não unidade. Em vez de integração, como na bandeira branca, uma sociedade tribal, fragmentada, que as cores não se misturam.

As festas de Dionísio, na mitologia grega, eram conhecidas por seu caos e excessos, incluindo o “sparagmos”, o ato de despedaçar um corpo. “É isso que está sendo celebrado”, afirma Pageau, “uma celebração da diversidade e da multiplicidade até a desintegração da unidade”.

Embora o carnaval pareça uma festa profana, ele está enraizado em rituais sagrados antigos que celebram a vida, a fertilidade e a continuidade da comunidade. O carnaval permite uma expressão controlada de sacrilégio, onde o profano pode ser experimentado sem romper completamente com o sagrado. Ele fecha um ciclo anual e, como a fuga do Egito pelo judeus descrita no Êxodo, é seguido de um “deserto” (a penintência) para se chegar à Terra Prometida.

Pageau também critica o uso da música “Imagine” de John Lennon, tocada após a performance. “Imagine que não há Céu, não há inferno, não há diferença e todos estamos juntos como um em um grande bacanal”, lembrando o paradoxo de uma mensagem de unidade imediata após uma celebração do caos.

Pageau conclui afirmando que “estamos assistindo à civilização ser desfeita”, criticando a inserção do carnaval em celebrações nacionais como sólida tradição como as Olimpíadas.

Eu não seria tão fatalista, mas entendo a preocupação dele. E acrescento, além do que coloquei no meu artigo anterior, que a festa foi cafona e mambembe, como naqueles museus de cera de cidade pequena em que os personagens são irreconhecíveis.

Nada daquilo representa a França, sua história e seu povo, apensar uma parte de sua elite. Nas próximas eleições, não duvido que os franceses devolvam a ofensa.

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