Entre luzes e trevas
Carta enviada aos assinantes da Gazeta do Povo
Estou de volta. “E daí?”, diria o presidente, mas prefiro lembrar Dickens: “aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos”. Vivemos a “primavera da esperança” ou o “inverno do desespero” entre a “estação da luz e das trevas”. Como parece ser a eterna sina do Brasil, com “tudo diante de nós” e “nada diante de nós”. É o nosso ponto de partida.
Minha história com a política começa formalmente em 2009, na extinta “Ideal TV”, canal da Editora Abril exclusivo para assinantes da antiga TVA. Num programa semanal, analisava o último ano do governo Lula sob a sombra assombrosa de sua declaração de que, na eleição do ano seguinte, todos os candidatos seriam de esquerda.
“Pela primeira vez não vamos ter um candidato de direita na campanha. Não é fantástico isso?"
Lula (15/09/2009)
O evento, disputadíssimo, comemorava os 45 anos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Lula, totalmente à vontade e surfando a bolha de popularidade do crédito anabolizado, que entorpecia o país em meio a uma crise mundial, disse: “pela primeira vez não vamos ter um candidato de direita na campanha. Não é fantástico isso? Vocês querem conquista melhor do que numa campanha neste país a gente não ter nenhum candidato de direita?” . Era a perfeita tradução do que esse apoiador de Hugo Chávez pensava sobre democracia. O coronel morreu, mas o chavismo resiste.
Não era verdade, como sempre, mas foi decifrado por alguns como um último pio de um canário agonizante na mina verde e amarela, um alerta involuntário de onde menos se esperava. Até alguns (poucos) da esquerda democrática lembraram que o caminho do partido único, da hegemonia total, começa com discursos de igualdade e justiça social mas termina em milhões de cadáveres empilhados. A unanimidade não é apenas burra, é genocida. Só existe consenso total no cemitério, como adiantou Stálin num artigo publicado em 1912, para ele uma profecia autorrealizável.
A democracia brasileira, como qualquer outra, precisa de uma direita liberal e democrática, ativa e com voz. Foi preciso que Lula comemorasse a morte da direita, num tempo em que as redes sociais ainda engatinhavam, para que começasse um lento e gradual processo de volta de uma tímida oposição ao debate. A vitória de Dilma Rousseff, que não contava com a mesma idolatria servil de parte da imprensa, marcou o início de uma virada que depois ganhou o empurrão da crise econômica e dos bueiros abertos pela Lava Jato.
Ainda em 2010, num texto infame em seu blog, o ultrapetista Ricardo Kotscho se espantava com o fato de que 5% dos brasileiros consideravam o governo Lula ruim ou péssimo. “Quem são eles, onde vivem, o que fazem, o que pensam?”, perguntava e logo respondia que não gostar do governo Lula era “um fenômeno psíquico, algo mais ligado aos sentimentos do que à razão”. A única opção racional, de gente sã e do bem, era aderir ao lulismo ou ser diagnosticado por Ricardo Kotscho.
A partir de 2015, ser de direita era a contracultura, a rebeldia, o bem contra o mal, a obrigação do brasileiro que fazia selfie com a polícia e alimentava seu patriotismo em panelaços. O impeachment uniu as ruas e levou parte da classe política a reboque. A bravata lulista de 2009, o espírito do tempo que traduzia o “nós contra eles” da hegemonia petista, era substituído, sem qualquer tom de cinza, pelo ufanismo udenista, agora repaginado como lavajatista, contra o “sistema”.
Nesta época, lá estava eu já publicando na Gazeta do Povo e subindo nos carros de som do Movimento Brasil Livre, pedindo impeachment e a prisão da jararaca. O pioneirismo deste jornal, ao abrir espaço para que a direita tivesse vez e voz, nunca poderá ser minimizado. Era plural antes de ser moda, era democrático antes de ser obrigação moral, era liberal antes de ser clichê.
Em 2020, um governo antipetista está no Planalto, representado por um grupo ideológico que era pouco relevante nas manifestações de 2015/16 mas soube como ninguém inflar as redes sociais e canalizar o humor do povo para seu projeto de poder. Abalos sísmicos como a prisão de Lula, candidato líder com folga nas pesquisas, e o atentado de Juiz de Fora, ambos no ano da eleição, terminaram o serviço. Começava a nova era templária que queria nada menos que salvar a civilização ocidental.
O eleitor brasileiro rejeitava em 2018, como sempre rejeitou, o que entendia por “velha política” e a opinião edulcorada, a mesóclise afetada, a espinha dorsal curvada do elitismo alienado. Ele sabe quem não é frio nem quente e, como no Apocalipse, vomita o morno. Lula e Bolsonaro lideraram as pesquisas desde a queda de Dilma, mantendo o impopular Michel Temer nas cordas da rejeição popular a despeito do que foi feito para reconstruir parte da terra arrasada.
Volto para este trem, que segue de Curitiba a Morretes mas também percorre o caminho entre a estação da luz e das trevas, entre as duas cidades de Dickens e de Santo Agostinho. É uma honra e um privilégio dividir essa viagem com você novamente.