"Não deixe o samba morrer", um hino conservador

Alexandre Borges
5 min readDec 4, 2016

Antes de repetir que o samba não é “de direita”, faço um convite: preste atenção na letra de “Não deixe o samba morrer”, de Edson Conceição e Aloísio Silva, um dos clássicos do gênero.

Você pode não gostar da música ou do gênero, claro, mas peço a você a chance de ouvir minha defesa de que “Não deixe o samba morrer” é um hino conservador nascido da essência do brasileiro ainda não doutrinado e lobotomizado por ideologias nefastas.

Detesto essa mania de politizarem tudo, mas como se comemora o Dia do Samba no dia 2 de dezembro, muita bobagem acabou sendo escrita sobre o assunto. É por isso que temos que separar a legítima reverência pela alta cultura ocidental, da qual o Brasil é um contribuinte pouco relevante, de um elitismo afetado e incapaz de enxergar méritos, quando existem, na cultura popular.

Quem não percebeu até agora o quanto o samba de raiz é conservador, o quanto enaltece às tradições, à “velha guarda”, os “bambas”, não sabe do que está falando. O samba é uma ótima ferramenta, se bem usada, para explicar ao brasileiro, didaticamente, o que é o conservadorismo político de matriz burkeana. E como ele não é estranho a sua própria cultura.

“Não deixe o samba morrer” é um hino conservador por homenagear a contribuição das gerações anteriores e por estabelecer a meritocracia como critério para que a cultura não “morra”. Mais do que isso, reconhece a cultura como definidora de uma sociedade e não a raça ou a economia. E ainda alerta para os riscos de se negligenciar a preservação do conhecimento acumulado pelos mais antigos.

A letra começa assim:

“Não deixa o samba morrer
Não deixa o samba acabar
O morro foi feito de samba
De samba para gente sambar”

Ao dizer que “o morro foi feito de samba”, a letra reconhece que o local físico (“o morro”) não é nada, o que importa, o que “faz” o “morro”, é o samba, é a cultura que precisa ser preservada. É o argumento conservador na essência, daqueles que Roger Scruton aplaudiria de pé.

Quando se diz que a América é uma “idéia”, o que se quer consolidar é a premissa de que o país não é seu espaço físico, mesmo que este seja evidentemente relevante, ou a cor da pele de seus habitantes, muito menos as riquezas materiais acumuladas. A América é “feita” dos seus ideais, valores e princípios que podem e devem ser abraços por seus imigrantes, assim como “o morro foi feito de samba”.

O tema central, que dá nome à música, é que a cultura pode “morrer”. E vai morrer se você “deixar”.

Os compositores reconhecem que uma cultura pode “morrer” se você se for desleixado, se não cuidar dela, proteger, defender, lutar por ela, se não assumir a tarefa de passar esta cultura para as próximas gerações. Sem o que identifica a “superestrutura” daquela comunidade, para usar o termo marxista, ela vai desaparecer a despeito de sua “infraestrutura”.

Como disse Reagan, “a liberdade está sempre a uma geração da extinção”, referindo-se a cultura que a civilização ocidental herdou dos gregos clássicos, dos valores judaico-cristãos, da Magna Carta, do Bill of Rights, da Revolução Americana, da abolição dos escravos, das grandes guerras, entre outros.

Culturas não passam para as próximas gerações “pela corrente sanguínea”, como o próprio Reagan complementou, é preciso ensinar às crianças o que ela é, o que significa, qual sua importância e porque ela deve ser preservada.

É uma idéia que não nada a ver com o tradicionalismo, com a idealização utópica e reacionária do passado, um devaneio ideológico tão pernicioso quanto os revolucionários progressistas que veneram o futuro. Tanto o fetichismo com o passado quanto com o futuro são perversões políticas, o conservador preserva apenas o que funcionou, o que deu certo, e está aberto a mudanças desde que testadas e implementadas com sabedoria e prudência.

Cantar que uma cultura pode “morrer” serve de alerta aos que querem, por exemplo, abrir as porteiras da Europa indiscriminadamente para imigração em massa e irresponsável de povos alienígenas e francamente contrários à cultura ocidental. Sem assimilação, sem levar em conta a preservação da própria cultura, não é imigração, é invasão. Isso não tem absolutamente nada a ver com racismo ou xenofobia, como os inimigos da civilização ocidental querem que você pense.

“E quando eu não puder pisar mais na avenida
Quando as minhas pernas não puderem aguentar
Levar meu corpo, junto com meu samba
O meu anel de bamba, entrego a quem mereça usar
Eu Vou ficar
No meio do povo
Espiando
Minha escola perdendo ou ganhando
Mais um carnaval”

Neste belo trecho, a música canta nada menos que a meritocracia. Os compositores explicam em detalhes como a cultura deve ser preservada: os mais antigos, ao sentirem que não possuem mais condições de continuar carregando e celebrando a tradição, passam “a quem mereça usar”. Não a qualquer um, não a quem tem necessariamente a mesma cor, classe social ou nacionalidade. O anel é entregue a quem merece usar.

O rito de passagem é simbolizado pelo “anel de bamba” que será dado ao representante da nova geração que merecer tal distinção, uma honra que pressupõe responsabilidade, talento, comprometimento e dedicação. É como a cerimônia de coroação de um novo monarca.

A cultura escolhe e identifica seus defensores e guardiões numa verdadeira simbiose com eles. Sua preservação passa necessariamente pelo processo de escolha do novo aprendiz, como um Jedi que treina seu novo Padawan.

Após o ritual, o antigo guardião não se retira totalmente, não abandona suas responsabilidades, não deixa para lá. Ele vai para o “meio do povo”, despido de qualquer vaidade, mas fica “espiando”, com a “escola perdendo ou ganhando mais um carnaval”, já que a preservação da cultura é mais importante do que a alegria fugaz de uma vitória numa competição anual. A meta superior é a vitória do eterno contra o efêmero.

“Antes de me despedir
Deixo ao sambista mais novo
O meu pedido final
Não deixa o samba morrer
Não deixa o samba acabar”

A letra termina com um reforço do pedido ao aprendiz, é seu “pedido final”, é o que realmente importa. O velho sambista não cansará de repetir, o que vale é a preservação do que há de atemporal na alma e na essência do “morro”, da comunidade em que vivem, que é a cultura que está sendo passada a ele, aquela que foi testada e aprovada pelo tempo e pelo próprio “morro”.

O novo sambista pode e deve inovar, mas ele precisa conhecer a tradição para transcender, ele não pode destruir o passado e todo aprendizado acumulado sob pena de deixar o próprio “morro” perecer.

Não sou sambista, mas se isso não é um hino conservador, não sei o que é.

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