PIB feio não tem pai

Alexandre Borges
4 min readApr 9, 2020

Médico e político, Luiz Henrique Mandetta se divide entre honrar um juramento de 2.500 anos que diz “a saúde do meu doente será a minha primeira preocupação” e lidar com humores, narrativas, cálculos pré-eleitorais e sinais trocados dentro e fora do governo. A sombra de um certo ex-ministro gaúcho, muito próximo ao núcleo do poder, doutor em narrativas que agradam a militância e um indisfarçável candidato ao seu cargo, também não ajuda.

Enquanto clama, como todo terrabolista, por isolamento e quarentena, o ministro da saúde é sabotado por textos apócrifos, bordões irresponsáveis e todo tipo de charlatanismo e mistificação que corre sorrateiramente nas vielas virtuais do país. “O Brasil não pode ficar parado para sempre, é só uma gripe”, dizem os pajés nas correntes de WhatsApp. Desconheço quem tenha proposto a paralisia eterna da atividade econômica, mas há sempre um novo Emmanuel Goldstein pronto para prestar continência aos novos tempos.

Para lidar com o peso do combate à mais grave crise de saúde pública do país em um século, incluindo o fogo amigo, Mandetta pode ao menos contar com a confiança da opinião pública, um privilégio negado ao lendário Oswaldo Cruz há cem anos. O mais notório sanitarista da história do Brasil chegou a ser o inimigo público número um no início do séc. XX, mesmo com o apoio do presidente Rodrigues Alves (1902–1906). Suas medidas de saneamento contra peste bubônica, febre amarela e a vacinação contra a varíola causaram literalmente uma revolta armada no país.

Nelson Rodrigues, nascido poucos anos depois da “Revolta da Vacina” em 1904, não entendia como Oswaldo Cruz escapou de uma morte violenta de tanto ódio que despertou quando persuadiu Rodrigues Alves a instituir a vacinação obrigatória. O surto de irracionalidade teve patrocinadores ilustres, como Rui Barbosa. Não satisfeito em ajudar a quebrar a economia do país dez anos antes, no famigerado Encilhamento, a “Águia de Haia” continuava a acreditar que seus conhecimentos jurídicos eram extensíveis a outras áreas, como a epidemiologia e saúde pública. Ao final, a resiliência do governo Rodrigues Alves venceu e milhares de vidas foram salvas.

Na primeira década do século passado, a capital federal do país, a despeito das belezas naturais e do charme barroco dos edifícios mais icônicos, era uma cidade insalubre, pestilenta e infestada de ratos. “ No Brasil, a belle époque não teve nada de belle époque”, escreveu Nelson Rodrigues, que chegou a conhecer um pouco do Rio de Janeiro das “carruagens e cavalos com penachos”. Para Nelson, o Rio machadiano dos lampiões se apagou na pandemia que infectou dois em cada três cariocas quando ele tinha seis anos de idade.

A escolha entre economia e vidas humanas, como qualquer bípede sabe, é um falso dilema

A gripe espanhola, que de espanhola não tinha nada, pode ter matado de 50 a 100 milhões de pessoas no mundo entre 1918 e 1920, ou mais que as duas grandes guerras somadas. Só no Rio de Janeiro, a pandemia vitimou 15 mil em poucos meses e ninguém menos que o próprio Rodrigues Alves, eleito para um segundo mandato e que sequer tomou posse. O mesmo presidente que bancou a nomeação de Oswaldo Cruz e desinfetou grande parte do Rio, contra tudo e contra todos, quinze anos depois era levado pela gripe que chegava do hemisfério norte de navio.

A mais devastadora epidemia registrada no país chegou a bordo do “Demarara”, vindo de Liverpool e chegando ao Rio de Janeiro em 14 de setembro de 1918. Os primeiros casos foram tratados com desdém e só quando os cadáveres começaram a ser empilhados nas ruas o povo entendeu a gravidade e a dimensão do problema. Os corpos eram colocados nas janelas das casas ou atirados nas ruas para serem recolhidos pelas carroças da limpeza pública, depois enterrados em valas coletivas. Panos pretos nas janelas indicavam que uma família inteira estava acamada e aquela casa pedia socorro.

Alguns ainda esbravejavam contra a doença dizendo que era uma criação da sinistra Alemanha, a inimiga dos Aliados naqueles últimos momentos da Primeira Guerra. A gripe foi batizada pela neutralidade da Espanha no conflito, que fez com que sua imprensa estivesse livre para noticiar a doença. Muitas lições de 1918 ainda não foram aprendidas, mas ainda é tempo de salvar muitas vidas do COVID-19 com honestidade e vontade política.

A escolha entre economia e vidas humanas, como qualquer bípede sabe, é um falso dilema, mas serve a um propósito: terceirizar politicamente a inevitável recessão em algum colo com pouca artilharia de comunicação, especialmente nas redes sociais, para se defender. O crescimento do PIB do Brasil, que foi de 1,1% em 2019, pode ficar no vermelho este ano e a temporada de caça a bodes expiatórios, reais ou fabricados, está aberta. PIB feio não tem pai.

Artigo publicado originalmente em 03.04.2020

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