Política, diversão e arte

A batalha cultural é a primeira e a mais importante de todas na luta política

Alexandre Borges
17 min readFeb 16, 2017

Manfred von Richthofen e Marísia dormiam em casa quando a filha Suzane, 19 anos na época, abriu o portão e deixou que os irmãos Daniel e Cristian Cravinhos entrassem. O desfecho tarantinesco daquela noite você sabe.

Nesta semana, Suzane voltou ao noticiário ao ser pré-aprovada para receber um empréstimo do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e cursar administração numa faculdade de Taubaté, a pacata cidade de Monteiro Lobato e do Sítio do Pica Pau Amarelo. Alguém avise às crianças da cidade que a Cuca vai pegar.

Suzane, Andreas, Marísia e Manfred von Richthofen

Manfred e Marísia foram mortos com golpes de barras de ferro na cabeça por Daniel e Cristian enquanto Suzane esvaziava o cofre da família. O trio planejou simular um latrocínio para dividir a parte de Suzane da herança. O patrimônio de Manfred e Marísia é avaliado em mais de R$ 10 milhões em valores de hoje.

Suzane era herdeira natural dos pais e com a morte deles entraria no seleto clube de milionários do Brasil com menos de 20 anos de idade, livre para viver com Daniel e sem o incômodo dos pais que proibiam a relação. Se não tivesse sido descoberta, a decisão de Suzane de adiantar o recebimento da herança seria, numa visão puramente econômica, "racional" e utilitarista, justificável. Um adiantamento de recebível sem juros e taxas bancárias.

Jonathan Rhys Meyers (Chris Wilton) e Scarlett Johansson (Nola Rice) em "Match Point"

Em Match Point, Woody Allen conta a trajetória de Chris Wilton, professor de tênis que casa por interesse com uma aluna rica enquanto mantém um caso com Nola, namorada do cunhado. A amante engravida e se recusa a abortar, ameaçando contar tudo para a esposa dele e arruinar sua nova vida. Chris mata Nola, ninguém descobre e o ex-tenista mantém seu casamento e a riqueza. O assassino tomou uma decisão que, considerando apenas seus ganhos financeiros, é difícil de ser contestada.

Os crimes cometidos por Suzane von Richthofen na vida real e Chris Wilton na ficção são repulsivos porque atingem diretamente o código moral e ético da sociedade que produziu ambos. Qualquer discussão econômica sobre os dois casos é impossível ou fútil se não levar em conta a dimensão moral envolvida.

Falar que a cultura é a prioridade no debate político costuma suscitar reações violentas de tecnocratas e utilitaristas a partir de um entendimento rasteiro do argumento.

Alguns liberais pensam que propomos passar dia discutindo qual a melhor versão da oitava sinfonia de Mahler enquanto o Brasil mergulha cada vez mais fundo na recessão. A proposta é diametralmente oposta.

É exatamente por entender a importância da economia que todos os defensores da civilização ocidental e do liberalismo precisam aprender de uma vez por todas como explicar a validade de suas idéias e os resultados obtidos por elas numa linguagem persuasiva e cativante, que ajude o cidadão a entender, dentro da guerra de narrativas políticas que é exposto diariamente, qual lado merece seu apoio.

"No princípio era o Verbo."

João 1, 1

Os livros mais influentes da história (Bíblia, Bhagavad-Guitá, Alcorão, I-Ching e Tao Te King) são repletos de parábolas e narrativas morais. O poder incomparável de persuasão, a capacidade de atração de fiéis e de conversão de descrentes destas obras fala por si.

Não custa repetir que a revolução cubana, antes de ser um movimento político, é provavelmente o mais importante e bem sucedido caso de relações públicas da história. Sem uma estratégia profissional de comunicação, como os próprios líderes do movimento reconhecem, a tomada de poder por Fidel, Raul Castro e Ernesto "Che" Guevara nunca teria acontecido.

Fidel Castro é tratado como astro do rock por crianças americanas usando barbas e bonés em 1959

Durante a década de 50, Fidel Castro recebeu dinheiro e apoio de cubanos radicados nos EUA, insatisfeitos com o governo de Fulgencio Batista.

Enquanto financiavam Fidel e subornavam militares do círculo mais próximo de Batista, os mesmos grupos faziam uma complexa operação de desinformação que, usando os principais jornais americanos como o The New York Times e o Washington Post, minavam o apoio do presidente cubano na opinião pública e no governo dos EUA, até que ele fosse largado à própria sorte.

Quatro meses após o golpe, em abril de 1959, Fidel Castro visita os EUA num tour conduzido por uma das mais importantes empresas de relações públicas americanas, convidado por uma associação de jornalistas. O novo ditador cubano foi recebido como rockstar e, numa visita à sede do The New York Times, agradeceu os jornalistas dizendo que, sem eles, a revolução nunca teria sido bem sucedida.

Toda mitologia criada em torno do facínora cubano e sua revolução foram fundamentais não apenas para a derrubada do regime anterior como para a manutenção de seu governo genocida até hoje, 58 anos depois. No ano passado, Barack Obama visitou a ilha para prestar reverência a Raul Castro que, acintosamente, recusou um simples aperto de mão dele.

Barack Obama tenta bajular Raul Castro, que recusa acintosamente seu aperto de mão

Qualquer um familiarizado com a política real sabe que, especialmente nos últimos séculos, os discursos ideológicos mais aceitos foram os que incorporaram elementos simbólicos e narrativas que criaram "religiões políticas", termo usado (e depois abandonado) por Eric Voegelin. Para uma introdução ao tema, leia o ensaio de Andre Assi Barreto "Movimentos de massa e as religiões políticas" e o artigo "Para além dos milagres" de Olavo de Carvalho.

Duas pesquisas divulgadas pela imprensa recentemente deveriam levar os economicistas a repensarem suas premissas sobre como a realidade do país é percebida pelos brasileiros. Em ambas, o governo Michel Temer, que completa nove meses, é uma decepção.

Michel Temer: para os brasileiros, a vida não melhorou

Na pesquisa realizada pelo Instituto Paraná, apenas 7,2% dos brasileiros acreditam que a vida melhorou após o impeachment de Dilma Rousseff. Metade dos entrevistados classificou o atual governo como "péssimo", a pior opção disponível, enquanto 1,2% acredita que é "ótimo". Não bastasse, 60% dos entrevistados não consideram que a Lava Jato diminuiu a corrupção no Brasil.

O levantamento realizado pelo Instituto Ipsos é ainda mais assustador: 74% dos brasileiros consideram o governo Michel Temer igual ou pior do que o da antecessora. Três entre quatro eleitores do país não vêem melhora com a saída de Dilma Rousseff do Planalto. O Brasil não gosta de Michel Temer.

Olhando apenas para a economia, a inflação que estava no patamar de 10% ao ano quando Temer assumiu caiu para 5,35% no acumulado de 12 meses, nada menos que a metade. O PIB mostra sinais de recuperação em todas as projeções dos analistas de mercado depois de três anos consecutivos de uma depressão inédita na história do Brasil.

Palestra "Cinema e Cultura"

Os brasileiros não estão apenas insatisfeitos. Há poucos dias, os movimentos de rua marcaram manifestações para o próximo dia 26 de março. Se a economia melhora, por que a avaliação do governo despenca? Por que o eleitor não pondera e reconhece, como esperam os economicistas, a diminuição da inflação e a retomada do crescimento?

Como não estão comemorando o fim de intermináveis 14 anos de governos petistas, responsáveis pelos maiores escândalos de corrupção que se tem notícia e que deixaram uma terra arrasada na economia?

Ao não entender a importância de uma estratégia de comunicação profissional e moderna, Michel Temer enterra a própria popularidade e compromete seu legado. O espaço vazio deixado por sua falta de liderança pode desestabilizar o país e desenhar uma eleição radicalizada em 2018, repleta de discursos que rachem o eleitorado e com resultados imprevisíveis.

Geraldo Alckmin vestido com o logo de estatais na campanha presidencial de 2006: incapacidade de defender o legado do próprio partido

O fenômeno infelizmente não é novo. Num dos episódios mais constrangedores da política brasileira recente, o candidato a presidente pelo PSDB em 2006 Geraldo Alckmin foi acusado de privatista pelos opositores. O Brasil havia passado por um processo importante de privatizações na década anterior, em grande parte conduzido pelo próprio partido de Alckmin.

Sua reação foi vestir uma roupa repleta de logotipos de empresas estatais e um boné do Banco do Brasil como prova de que não continuaria privatizando, colocando ponto final num dos mais importantes legados do PSDB para o país. O candidato tucano se sentiu incapaz de defender as privatizações ocorridas no governo FHC como a da Vale ou do sistema Telebras, dois dos raros momentos em que um governo brasileiro tomou uma decisão que melhorou significativamente o país.

Mesmo no auge do escândalo do mensalão, Alckmin conseguiu a façanha de perder a eleição para Lula e de uma maneira provavelmente inédita, com 2,5 milhões de votos a menos no segundo turno do que havia conquistado no primeiro.

A eleição de 2006 ainda contribuiu para consolidar a percepção absurda de que as privatizações, apelidadas de privatarias pela imprensa, representavam um crime neoliberal (feito por um partido social-democrata) de venda de "patrimônio público a preço de banana". Mais uma vez, como sempre, a narrativa venceu a realidade.

Scott Adams, o humorista que previu tudo sobre a eleição de Donald Trump

A última eleição presidencial americana foi tratada como surpreendente pela imprensa e seus analistas tradicionais, mas todo desenrolar da campanha e a vitória de Donald Trump foram previstos com precisão cirúrgica por Scott Adams, conhecido por ser o criador do Dilbert.

Adams se declara um especialista em persuasão, é treinado em hipnose e analisou durante meses em seu blog as técnicas de comunicação que, segundo ele, foram usadas por Trump para vencer. Qualquer um que ainda acredite que eleição é um processo racional de tomada de decisão deveria passar a acompanhar o que Adams escreve.

"Deixe-me escrever as canções de um povo — não me importo com quem escreve suas leis."

Andrew Fletcher (1655–1716)

Somos seres morais. Nossas decisões são diretamente influenciadas por códigos de conduta que transcendem a razão utilitarista, o interesse individual puramente egoísta que quer maximizar ganhos em cada ação a despeito de prejuízos a terceiros. O altruísmo, a empatia e a solidariedade não são bugs no sistema da psiquê humana mas funcionalidades evolutivas.

Charles Darwin e a "seleção de grupo"

Charles Darwin elaborou o conceito de "seleção de grupo" para explicar a moralidade humana. Para o pai da teoria da evolução das espécies, apenas a seleção natural não teria como explicar como sociedades com indivíduos meramente egoístas e auto-centrados, com a única meta de passar seus genes adiante, podem ter problemas em seu desenvolvimento. O tema é controverso, mas abre caminhos interessantes para a compreensão do comportamento altruísta e moral do homem que convive com seu lado mais egoísta e utilitarista desde sempre.

Quando se adiciona à equação amor, fraternidade, solidariedade, patriotismo, respeito, honestidade, justiça, coragem, reciprocidade, obediência, culpa, vergonha, perdão, entre outras funcionalidades morais aos indivíduos, o grupo se torna mais competitivo na luta pela sobrevivência e desenvolvimento. O altruísmo e a moralidade são funcionalidades complementares e não substitutos ao interesse próprio individual.

A sociobiologia ainda debate ferozmente o papel da seleção natural, seleção por parentesco e seleção de grupo no processo evolutivo das espécies. É provável que o diferencial competitivo mais importante para a sobrevivência e prosperidade de uma sociedade não esteja em um destes fatores isoladamente, mas no equilíbrio instável e imperfeito entre todos.

"Nossa Constituição foi feita unicamente para um povo moral e religioso. Ela é totalmente inadequada para governar qualquer outro."

John Adams (1735–1826), um dos pais fundadores dos EUA

A despeito do que seu professor marxista disse, a sociedade americana, para ficar no exemplo mais óbvio, está sempre ocupando as primeiras posições dos rankings mundiais de filantropia como o World Giving Index, levantamento que mede não apenas a quantidade de dinheiro doado mas também o número de horas investidas em voluntariado e a predisposição para ajudar estranhos.

Países com maiores índices de liberdade econômica como EUA, Canadá, Nova Zelândia, Inglaterra, Noruega e Austrália figuram nas mais altas posições do ranking de solidariedade (em vermelho no mapa abaixo), enquanto nações mais estatistas e intervencionistas (em azul) como Rússia, China, Venezuela e Grécia ocupam as colocações mais baixas. Não é coincidência.

Existe uma correspondência direta e inegável entre mais estado e menos solidariedade individual, confiança, associação e cooperação social em qualquer nação. Alexis de Tocqueville encerrou a questão em Democracia na América, publicado há duzentos anos e até hoje o melhor livro escrito sobre o país.

World Giving Index 2016: Países mais livres são também os mais solidários

A idéia de que mais liberdade leva ao egoísmo é simplesmente absurda, fruto de uma leitura pedestre de Adam Smith, o escocês genial que fundou a economia moderna e escreveu sobre o interesse próprio (self-interest) e foi entendido de forma energúmena por alguns como defensor do egoísmo (selfishness). Logo Smith, um moralista, que muito antes de publicar A Riqueza das Nações (1776) lançou Teoria dos Sentimentos Morais (1759).

A matemática também se interessou por entender como decisões individuais estratégicas acabam influenciadas por outros participantes (ou jogadores) de um mesmo sistema. Você certamente se lembra da Teoria dos Jogos por conta de Uma Mente Brilhante, grande vencedor do Oscar de 2002 com Russell Crowe no papel de John Nash.

A Teoria dos Jogos busca desenvolver modelos matemáticos que ajudem na compreensão de como agentes participantes de um sistema de decisão competem e colaboram buscando o melhor retorno individual. É um guarda-chuva teórico usado não só na biologia mas até em ciências da computação e na política.

Um estudo curioso desenvolvido pelo matemático alemão Thomas Apolte, usando o ferramental da Teoria dos Jogos, sugere que muitas ditaduras duram porque, mesmo que toda sociedade queira se livrar do regime, o custo individual de se jogar numa revolução é alto demais.

O "rebelde desconhecido" que enfrentou sozinho os tanques durante os protestos na Praça Celestial na China em 1989, uma das imagens mais marcantes do séc. XX

Quando ninguém está disposto a se sacrificar e fazer protestos, organizar movimentos oposicionistas e tentar derrubar o governo, a ditadura vai perdurando mesmo contra a vontade majoritária da população. A nação empobrece, enfraquece e morre sem reagir.

Sem heróis, indivíduos que, por definição, buscam melhorar a vida de terceiros colocando a própria segurança em risco, a sociedade se torna refém de totalitários e tende ao declínio e à extinção.

"A invenção da poltrona acabou com o herói."

Millôr Fernandes

Nassim Nicholas Taleb, um dos mais instigantes pensadores da atualidade, contribuiu de maneira inestimável com a discussão ao criar o conceito de "antifragilidade", a idéia de que um sistema "robusto", que é resisliente e resistente aos impactos, é inferior ao "antifrágil", aquele que melhora ao ser atingido. O "robusto" sobrevive à incerteza, à volatilidade e ao caos, o "antifrágil" se alimenta deles.

A idéia de antifragilidade é uma ferramenta poderosa para entender a superioridade do capitalismo sobre qualquer outro sistema econômico. Cada empresa privada é "frágil", exposta ao risco de falir a qualquer momento por razões de mercado, e muitas realmente fecham.

Quando uma empresa encerra suas atividades, seu desaparecimento fornece informações úteis para tornar os concorrentes e o mercado, como um todo, mais fortes. Um sistema que se alimenta da volatilidade para ganhar solidez é, por definição, antifrágil.

Abrir uma empresa, inovar, competir, investir, produzir, servir o consumidor, vencer pelo mérito, trabalho duro e assumindo a responsabilidade individual das decisões, são atividades humanas que decorrem de escolhas éticas e morais de uma sociedade que aceita, incentiva e premia o sucesso individual. E é por isso que o capitalismo é um fenômeno tão raro e recente na história da humanidade.

Para a historiadora e economista Deirdre McCloskey, foi a vitória dos "valores burgueses", um fenômeno sociológico e cultural surgido na Holanda do séc. XVII e logo depois espalhado pela Inglaterra do século seguinte, que possibilitou a Revolução Industrial, as democracias liberais e o que se entende hoje por capitalismo. Mercados sempre existiram, mas o que é único no liberalismo, para ela, é a aceitação da burguesia e de seus valores éticos e morais: "a economia não tem como explicar o mundo moderno", como resume Deirdre McCloskey.

Um dos intelectuais mais populares sobre a moralidade humana e psicologia social hoje é Jonathan Haidt, que você provavelmente conhece das suas popularíssimas palestras no TED. Haidt não tem dúvida de que "a moralidade é uma capacidade humana extraordinária que fez a civilização possível" e que nós não somos apenas morais mas "intrinsecamente moralistas e críticos".

Jonathan Haidt: mente moral humana é uma conquista evolutiva

Haidt explica que é nossa mente moral, que busca honra, justiça e ética, que possibilitou ao homem criar os vastos e complexos sistemas de cooperação social que chamamos de sociedade e nação. É o compartilhamento de uma cultura comum que "cola" os indivíduos em relações de confiança e que possibilitam o surgimentos de mercados dinâmicos e prósperos.

Suas pesquisas mostram que o primeiro impulso humano é fazer o que ele chama de "racionalização moral" sobre qualquer assunto e só depois construímos outros argumentos para justificar nossas decisões, opiniões e julgamentos. Haidt reconhece que a "racionalização moral" não é sempre um instrumento para a busca da verdade, muitas vezes ela tenta justificar nossas ações ou defender o grupo social que pertencemos. Sem compreender a mente humana, é impossível persuadir alguém de qualquer assunto.

Friedrich von Hayek (1899–1992), autor de uma das mais sofisticadas defesas da "seleção de grupo" como ferramenta evolutiva

Outro defensor fundamental da idéia de "seleção de grupo" e da importância da transmissão dos valores morais numa sociedade é ninguém menos que Friedrich von Hayek, vencedor do Nobel de 1974 e um dos nomes mais reverenciados e cultuados em toda tradição da Escola Austríaca de economia.

Hayek trabalhou por mais de três décadas a teoria da evolução cultural e moral de uma sociedade como fundamental para a construção da "ordem espontânea", idéia basilar de todo pensamento hayekiano e que justifica e fundamenta sua defesa do liberalismo.

Em resumo, Hayek defendia que a evolução de um grupo social, assim como acreditava Charles Darwin, era baseada na sua cultura e tradições que davam aos indivíduos um ferramental indispensável para prever o comportamento de membros desconhecidos do mesmo grupo, fora do seu círculo social imediato, o que contribuía diretamente para a ordem espontânea daquela sociedade.

A capacidade de aprendizado humana pela imitação e interação social faz com que as tradições e costumes sejam naturalmente construídos e transmitidos entre os indivíduos do grupo, especialmente as normas e regras básicas de convívio que regem as relações. Estas normas são instrumentos evolutivos tão importantes para o grupo quanto uma vantagem competitiva de um animal contribui para a preservação da própria espécie.

“O verdadeiro soldado não luta por ódio do que está à frente, mas por amor ao que deixou para trás.”

G. K. Chesterton

Regras e costumes sociais aceitos por um grupo, com o tempo, competem com normas de outros grupos até que os vencedores se transformem em tradições e formem uma "cultura". Esta cultura é impossível de ser criada ou concebida por indivíduos isoladamente, ela é o produto natural e espontâneo de incontáveis tentativas e erros que foram sendo testadas e incorporadas a partir dos seus resultados reais, formando e avançando a ordem social e civilizatória.

Para Hayek, portanto, a cultura de um grupo social é um conhecimento superior ao pensamento individual isolado, informação que pode chocar alguns e que nunca deve ser confundida, no extremo oposto, com uma defesa de regimes "coletivistas" que constróem ordenamentos sociais e legais heterônimos e arbitrários.

Barack Obama em 2008: "estamos a cinco dias de transformar fundamentalmente os Estados Unidos da América"

Lembre sempre que a cultura a que se refere Hayek só é preferível porque foi construída naturalmente, de baixo para cima. A ordem espontânea é o exato oposto do tipo de relação social de regimes de matriz socialista em que o que prevalece é a decisão autocrática da burocracia estatal ou do líder do governo.

Quando um político declara querer criar um "novo homem" ou "transformar fundamentalmente" seu país, como Barack Obama dias antes de assumir a presidência, ele quer dizer que rejeita a cultura, as tradições e a ordem construída ao longo de gerações daquela sociedade e que devem ser substituídas por suas próprias visões e utopias.

"Cultura é a correnteza que deságua na política."

Andrew Breitbart

Quando se diz que cultura e educação são os temas políticos mais importantes, muitos liberais entendem equivocadamente como uma tentativa de ignorar a relevância e urgência de outras questões como as econômicas nos debates. Não é nada disso.

Lei de Gérson: "Gosto de levar vantagem em tudo, certo?"

Há também os "marxistas de sinal trocado", liberais que sequer entendem a relevância de debater cultura, moral e educação, comprando pelo valor de face a tese marxista de que é a economia ("infraestrutura") que define a cultura ("superestrutura"). Eles acreditam que o indivíduo é um sociopata que apenas quer, como disse Gérson no clássico comercial do cigarro Vila Rica, "levar vantagem em tudo".

Quando socialistas acusam liberais de serem ganaciosos e egoístas, exploradoras e insensíveis, alguns caem na armadilha e respondem, como crianças mimadas e birrentas, "sou mesmo, e daí?" É tudo que o socialista precisa, já que o próprio Marx, desde o Manifesto Comunista, já reconhecia a capacidade do capitalismo de criar riquezas.

O argumento econômico de Marx foi desossado por Ludwig von Mises em 1920, mas a idéia de que o capitalismo é um sistema imoral que enriquece ganaciosos e espertalhões, gente abjeta que ninguém quer ver com poder e sucesso, não dá sinais de que vai morrer tão cedo. E é ela que atrai tantos desavisados para a esquerda.

A construção do mito do capitalismo cruel e explorador é originado especialmente na cultura e nas artes, desde o tempo de Marx até hoje em Hollywood, na literatura, nas novelas e minisséries. Um socialista radical como Oliver Stone, que cria um personagem como Gordon Gekko em Wall Street, é capaz de produzir mais estrago do que dez mil livros defendendo o socialismo.

“O ponto é, senhoras e senhores, que a ganância, por falta de uma palavra melhor, é boa. A ganância é certa, ganância funciona. A ganância esclarece, penetra e capta a essência do espírito evolutivo."

Gordon Gekko

Gordon Gekko em "Wall Street": "A ganância é boa"

Espero que entendam de uma vez por todas: a mente humana é antes de tudo moral e tanto as crenças político-ideológicas como as escolhas do dia a dia são ancoradas no entendimento do que é certo ou errado, justo ou injusto, bom ou mau, o que precede a consideração utilitarista sobre se vou "levar vantagem" como indivíduo.

O capitalismo, a partir dos "valores burgueses" que contribuem para a "seleção de grupo" das sociedades que adotam o sistema, permite que os indivíduos e organizações que prestam os melhores e mais úteis serviços à sociedade recebam o reconhecimento e a retribuição da própria sociedade diretamente comprando seus produtos, realimentando e fortalecendo todo o sistema.

"Primeiro você vence a discussão, depois você vence a eleição."

Margareth Thatcher

Priorizar a cultura, as artes e o ensino, é influenciar a imaginação moral da população que precisa se assegurar que o liberalismo é o mais justo dos sistemas econômicos já testados. Só depois é que ela vai resolver se defende o livre mercado para ter acesso ao novo iPhone.

Quando o liberal inverte a ordem do debate e coloca a economia antes da certeza de que o público está na mesma página em relação aos valores éticos e morais, o argumento racional e utilitarista pode surtir efeito contrário ao desejado. O liberal quer uma sociedade mais livre, justa e próspera para todos, mas pode soar como quem está defendendo Suzane von Richthofen ou Chris Wilton, como um Gérson ou um Gordon Gekko.

A surra que Michel Temer está tomando nas pesquisas de opinião deveria servir mais uma vez de lição aos que ainda não entenderam que a população não é necessariamente composta de sociopatas que apenas se preocupam com números descontextualizados ou ganhos de curto prazo. Nem de adolescentes alienados que não entendem a complexa teia de relações sociais que constituem a vida em sociedade.

Edmund Burke, o pai do conservadorismo moderno, resumiu brilhantemente a idéia quando disse que "a sociedade é uma parceria entre os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer". Um povo que não entende e não respeita o legado dos antepassados, não cuida da segurança e da liberdade dos vivos e cria dificuldades e embaraços para as gerações seguintes, constitui um grupo disfuncional e fadado ao fracasso no longo prazo.

Uma sociedade moral e solidária é uma conquista evolutiva que deve ser celebrada por todos. Ela não é incompatível ou contrária ao liberalismo, muito pelo contrário, foi a civilização ocidental, com seus valores judaico-cristãos, que deu à luz as sociedades mais livres e prósperas da história.

O investimento na construção de narrativas na cultura, nas artes e no ensino pelos liberais não é apenas desejável, é um passo fundamental para que a opinião pública incorpore os valores que dão convicção e confiança de que ela está no caminho certo, ético e moral para construção de um mundo melhor.

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